Nas proximidades do aniversário de 11 anos da Lei de Cotas, universidade lança o Núcleo de Estudos Africanos, Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI)

A comunidade acadêmica da UFCSPA, convidados e público geral assistiram na última terça-feira, 5, ao lançamento do Núcleo de Estudos Africanos, Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI). O Núcleo é uma ampliação do Grupo de Estudos Afro-brasileiros (GEAB) constituído na universidade desde 2020, no âmbito do Núcleo de Inclusão e Diversidade (NID), com ativa participação do Coletivo Negro Raça, de integrantes egressos e alunos negros da universidade.
O evento foi promovido uma semana após o aniversário de 11 anos da política de cotas nas universidades e instituições federais de ensino, por meio da Lei nº 12.711 promulgada em 29 de agosto de 2012. A lei garante uma reserva de 50% das matrículas aos alunos vindos da educação pública. Dentro dessa reserva, a lei prevê que metade seja destinada a estudantes cujas famílias tenham renda mensal de até um salário mínimo e meio por pessoa e a outra metade a estudantes de renda maior que esse valor. Ainda, dentro das duas faixas de renda, estão inseridas as cotas raciais: matrículas reservadas aos alunos que se autodeclaram pretos, pardos e indígenas.
O número de vagas das cotas raciais é determinado conforme a proporção da população negra e indígena na localidade da instituição de ensino, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desde 2017, sob os mesmos parâmetros de definição de quantidade de vagas, pessoas com deficiência também são contempladas.
Nos seus 11 anos, a Lei de Cotas mostrou-se efetiva na promoção da diversidade e da inclusão, mas os desafios são constantes. Em 2018, os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) apontou que, pela primeira vez, os estudantes pretos e pardos passaram a representar maioria entre os matriculados nas universidades públicas do país, quando somaram 50,3%. Mas, dados divulgados em 2023 pela Pnad evidenciam que a desigualdade entre brancos e negros no acesso ao Ensino Superior volta a crescer após três anos, a despeito do último levantamento do IBGE. O Censo 2022 mostra que 42,8% da população brasileira é composta por brancos, enquanto 45,3% se autodeclara parda, 10,6% se autodeclara negra e 0,83% é formada por indígenas.
Nesse contexto, o NEABI é criado como um órgão de natureza política, acadêmica, social e cultural, como outros presentes em diversas instituições de ensino públicas e privadas. É um setor propositivo, deliberativo e consultivo, inserido no âmbito da Política de Ações Afirmativas no Ensino Superior da UFCSPA. O Núcleo é formado por representantes da comunidade acadêmica e também da comunidade externa, em especial representantes dos movimentos negro, indígena e quilombola, além de diversos órgãos que atuam na saúde com essas populações.

Lançamento
No seu lançamento, o NEABI promoveu quatro mesas temáticas e apresentações culturais de Luis Rogério Machado, o Jamaica, liderança do Quilombo dos Machado, e do coletivo de jovens artistas negros Poetas Vivos, cujos pilares são o afeto, a saúde mental e o empoderamento.
Na mesa de abertura, dois representantes do coletivo Negro Raça abriram as falas da noite. Patrick Marcondes fez um breve apanhado histórico desde a criação do coletivo até a formação do NEABI e questionou: “Essa universidade forma centenas de profissionais que vão atender muitos negros no SUS. Onde estão as disciplinas de saúde da população negra?”. Giorgio Pereira reafirmou que o coletivo e o NEABI surgem sobre um cunho político, onde o tensionamento é uma importante ferramenta, e convidou a pensar como a materialidade interfere na permanência, na saúde mental e no contexto social dos alunos negros. “Não queremos mais um futuro pré-determinado traçado para a gente”, ele completa, ao reforçar o compromisso do coletivo Negro Raça com a construção de uma universidade, de fato, antirracista.
A pró-reitora de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis, Mônica de Oliveira, revisitou sua história como primeira professora negra da Universidade, quando percebeu que não havia outras referências negras no corpo docente. Anos depois, ao ser convidada para as conversas e reuniões de criação do GEAB, ela entendeu a importância de um espaço para começar a articular essas lutas. Como pró-reitora na UFCSPA, ela afirma: “Vamos estruturar de forma segura e consistente nosso compromisso com o atendimento às demandas que nos trazem!”
A reitora Lucia Pellanda ressaltou que este foi “um dos momentos mais importantes da Universidade”. Lucia se disse honrada por acompanhar de perto a trajetória de Mônica de Oliveira, e também enfatizou que ainda há muito trabalho a fazer. “É assim que se avança, construindo sobre os passos que já conseguimos dar. Estamos em direção à universidade que queremos. Precisamos continuar lutando para que a Universidade se torne cada vez mais acessível. Para além do ingresso, é preciso lutar também pela permanência, por acolher melhor, por formar pessoas que possam compreender melhor as necessidades da população negra e indígena, por ampliar esse debate”, destacou a reitora.

Programação completa
A segunda mesa, “Política de Ações Afirmativas no Ensino Superior: desafios e perspectivas”, foi introduzida por Victor Lisboa, do Levante Popular da Juventude e estudante do cursinho pré-vestibular popular Guilherme Soares, e mediada por Eronice Souza, aluna de Física Médica que apresenta o podcast PretoPod. O momento foi marcado por depoimentos contundentes dos convidados, além dos deputados estaduais integrantes da bancada negra na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Laura Sito, Matheus Gomes e Bruna Rodrigues, e também por Fran Rodrigues, jovem vereadora de Porto Alegre.
Uma fala de destaque foi da deputada Bruna Rodrigues, que acentuou o peso da presença do jovem Victor Lisboa na ocasião: “Fico muito feliz por ver que o Victor é um jovem negro da Vila Cruzeiro que não está com a cabeça rolando. Ele está com a cabeça na Universidade!”, destacou a parlamentar.
A mesa seguinte, "Enegrecer as universidades", contou com o reitor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa, Prof. Roberlaine Jorge, o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), José Carlos dos Anjos, a nutricionista Bruna Crioula, a Coordenadora-geral da ASSUFRGS, Tamyres Filgueira e os professores Alan Brito, do NEABI/UFRGS, e Frederico dos Santos, do NEABI da Universidade de Passo Fundo (UPF).
Roberlaine Jorge abriu seu pronunciamento com uma desrromantização acerca do seu cargo: “Ser reitor não me exime de nada nem deixa as coisas mais fáceis, como muitos supõem”. O reitor da Unipampa lembra que sua gestão encerra ao fim do ano vigente e, sempre que é questionado sobre como é ser um negro em posição de poder, ele responde: “O poder é isso: temos a batuta para assinar transformações. Mas depois de mim, será que vão continuar?”.
Roberlaine enfatizou que são indiscutíveis os avanços proporcionados pela Lei de Cotas e demais políticas afirmativas no âmbito da graduação, mas que ainda há um grande desafio na pós-graduação. “Observamos que nos mestrados e doutorados há mais alunos negros africanos intercambistas do que candidatos neros brasileiros. Isso é um paradoxo a ser superado”, ele completa. Na sua visão, esse panorama só muda com políticas nas gestões e nos concursos públicos, que levem a mais referências negras nos servidores em geral, nos corpos docentes e nas bancas avaliativas.
A fala da nutricionista Bruna Crioula foi ao encontro da declaração de Roberlaine: “Passar na pós-graduação foi muito significativo porque para enegrecer as universidades é necessário enegrecer nossa própria consciência”. Bruna completou: “Quais autores negros trazemos para pensar e educar saúde? O SUS precisa se servir de outras epistemologias, inclusivas, para atender toda a pluralidade humana”.
A última mesa, "Universidade: território indígena e quilombola", foi composta pelo líder do Quilombo dos Machado, Jamaica, a líder indígena Raquel Kubeo e o membro do Coletivo de Estudantes indígenas da UFRGS, Ruan Gomes, estudante de medicina na UFRGS. Jamaica frisou que “se queremos jovens quilombolas dentro das universidades, temos que ir lá dentro das comunidades consultá-los”, num discurso que indicou que tão importante quanto as cotas, é a presença da cultura dos cotistas dentro dos muros das universidades e o fortalecimento de uma escuta ativa.
Raquel Kubeo relembrou a história a partir da perspectiva indígena aos ouvintes. “Meus povos existem antes do Brasil. Meus ancestrais estavam nos seus territórios antes do Brasil ser invadido. As universidades muito se apropriaram dos seus conhecimentos e creditaram a pessoas brancas”.
Na última fala das mesas da noite, Ruan Gomes lembrou que no dia 5 de setembro é celebrado o Dia da Amazônia e também o Dia Internacional da Mulher Indígena, que referenciam “uma luta que resiste há 523 anos”. Ruan também nega o ano de 1500 como de descobrimento do Brasil, mas, sim, de invasão de territórios indígenas: “Se esse processo histórico fosse tratado diferente nas escolas, muitas pessoas não nos veriam com preconceitos”. Ruan contrapõe o discurso clássico de que o estudante indígena tem o dever de retornar à sua comunidade para aplicar o que aprendeu: “E se eu quiser ser um cirurgião cardiovascular na cidade grande, o que me impede?”. Ele cita o último Censo do IBGE, que indica que 4.832 municípios contam com população indígena e conclui: “Em todo território brasileiro você vai encontrar indígenas.”
Ao encerrar o evento, as professoras Luana Duarte Teles e Aline Aver Vanin, do NEABI, homenagearam a bolsista de apoio técnico Tanise Baptista de Medeiros, historiadora, mestre e doutoranda em Educação, de atuação central e fundamental na estruturação do Núcleo. Por fim, todos os presentes foram convidados para o Banquete de Olorum, organizado pela professora Luana, do corpo docente do curso de Gastronomia, que aconteceu no prédio 2.

Veja abaixo o vídeo de lançamento do NEABI UFCSPA:





